Argentina 1985

Cauana Mestre
4 min readOct 26, 2022

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Em 24 de março de 1976, um golpe de Estado depôs a então presidente da Argentina Isabelita Perón. Uma junta militar, coordenada pelas três forças armadas, assumiu o poder e o general Videla passou a presidir o país. A principal justificativa do golpe era a tarefa “messiânica” de reinstalar a ordem nacional. Ao longo de seus 7 anos, a ditadura militar fez cerca de 30 mil vítimas. 30 mil pessoas, a maior parte até hoje desaparecida.

No final de 1984, o promotor Julio Cesar Strassera e o procurador Luis Moreno Ocampo reuniram jovens advogados no julgamento mais importante da história argentina, o Julgamento das Juntas, que pretendia condenar os principais militares no comando da ditadura por crimes contra a humanidade. Esse é o cenário do filme Argentina 1985, do diretor Santiago Mitre, que tem Ricardo Darín (meu ídolo) no papel de Strassera.

A película tem 2 horas e meia de memórias.

Darín interpreta a decepção. Como seguir a vida ao redor de tantos fascistas dispostos a dobrar a verdade à crença, dispostos a justificar sem constrangimento as piores atrocidades que podem ser cometidas por alguém, como torturar uma mulher enquanto ela dá à luz sua filha? Strassera convoca os colegas para sua equipe, mas quase todos se recusam, aliados ao tradicionalismo violento do discurso fascista. A saída, então, é uma só: apostar na juventude. A jovem equipe jurídica da promotoria é a parte mais viva do filme, o justo contraponto à opacidade do conservadorismo. Esse é o núcleo do longa que nos faz rir e chorar. São os idealistas, os verdadeiros crentes, que nunca desistem de sonhar pelo futuro. Com eles me lembrei de amigos meus, de agora, engajados na luta pela liberdade de sonhar palavras novas.

“O sadismo não é uma ideologia política, nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral”, diz Strassera no memorável discurso de acusação. A frase me lembrou Clarice Lispector, em sua reflexão sobre Mineirinho, em 1962, morto com treze tiros.

“Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.

A perversão moral da qual fala Strassera é a escalada da violência que não conhece outro fim senão a satisfação. Preservar a ordem e a segurança é andar no piso térreo. Subir o primeiro degrau já é puro e simples prazer de matar.

Aqui, em nosso território vizinho, chegamos perto da eleição mais importante desde que reconquistamos nossa frágil democracia. Estamos a poucos dias de decidir se avançamos e sonhamos com outros tempos, como os jovens argentinos de 1985, ou se seguimos em direção ao abismo sem impor limites à barbárie que desliza pela multiplicidade brasileira.

No dia 08 de agosto de 2016, Jair Messias Bolsonaro homenageou o coronel Brilhante Ustra, chamando-o de herói nacional. Ustra era chefe do DOI-Codi durante a ditadura brasileira e foi responsável por inúmeras mortes e torturas, inclusive de mulheres grávidas. Eu jamais me esquecerei do que vi e jamais me esquecerei da tristeza de entregar meu país nas mãos de um declarado apoiador da violência.

Passei parte da minha adolescência em Buenos Aires, nos anos 2000. Algumas vezes escutei comentários de brasileiros que estranhavam a devoção do povo argentino à Evita ou ao cantor Carlos Gardel. “Vivem de saudosismo”, diziam. Muito tempo depois entendi que não era essa a palavra justa, mas sim a palavra memória. Lembrar é trabalhar pelo novo, é acreditar em tempos inéditos sem jamais recusar a história, para o bem e para o mal. “Não se pode conhecer um passado como ele de fato foi, mas apropriar-se de uma reminiscência”, afirma Walter Benjamin. Com os argentinos aprendi que as reminiscências insistem e que não devemos jamais nos desfazer delas. Com eles aprendi que o passado fala para o futuro e que esquecer é o equívoco mais fácil ao qual podemos recorrer para nos perder do essencial.

“Nos cabe a responsabilidade de fundar uma paz não no esquecimento, mas na memória, não na violência, mas na justiça. Esta é a nossa oportunidade e talvez seja a última. Utilizo, aqui, uma frase que não é minha, pois pertence a todo o povo argentino. Senhores juízes, NUNCA MÁS”. Assim termina o discurso de acusação de Julio Strassera, em 1985, antes de condenar vários dos militares julgados e conseguir, para o general Videla, a prisão perpétua.

Assim como a memória, a democracia também sobrevive por um fio. É preciso coragem para preservá-lo e força para, com ele, costurar aquilo que somos.

Argentina 1985 é um filme para nos lembrar de nunca mais esquecer.

Dia 30 de outubro é o dia de depositar a memória brasileira na urna. É o dia de apostarmos em tempos que nos permitam sonhar.

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.