Depois de Aftersun

Cauana Mestre
7 min readFeb 17, 2023

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Ensaiei muitas vezes escrever sobre o filme de Charlotte Wells, Aftersun, que assisti há pouco mais de dois meses. A cada tentativa, o texto parecia mais débil e incapaz de traduzir sequer uma fração do que eu havia sentido. Por fim desisti de caçar as palavras e esperei que viessem até mim.

Então, há alguns dias, sonhei com o pai de Sophie (Frankie Corio), o jovem Calum, interpretado por Paul Mescal. No sonho eu também era espectadora, mas estava bem perto dos dois, na varanda do apartamento de hotel que eles dividem em suas férias na Turquia. Calum chorava com o corpo, como chora no filme, contorcendo-se em dores impronunciáveis, numa das cenas mais vivas e tocantes que já pude assistir. Assim como o filme, meu sonho não me dava palavras, havia apenas o ruído de Calum, seu choro seco e desesperado. A angústia é isso, afinal, um silêncio sem nome para a qual é preciso inventar um. E foi assim que comecei a pensar em uma palavra: inanição.

Na medicina, a inanição descreve um estado de fraqueza absoluta, quando um corpo é privado do essencial. Não era uma palavra estranha para mim, mas a primeira vez que me atentei a ela foi em 2018, numa das vezes em que a médica do meu pai me transmitia seu boletim médico. Ela falava coisas difíceis de conectar: defesa, células, inanição, febre, pulmão, nomes de remédios e processos sanguíneos, palavras que não me diziam nada e que tampouco diziam algo sobre meu pai, cujo nome parecia ter sido levado pelo soro da manhã. Depois de todos aqueles termos, quando a médica ficou em silêncio absoluto, entendi o que me comunicava — meu pai estava morrendo.

Sonhar com Calum me fez lembrar da conexão entre inanição e morte. No dicionário, a definição da palavra é mais ampla e, ao mesmo tempo, muito mais exata: o inane é o estado de vazio. Uma das coisas que encontrei no filme de Charlotte Wells foi a encenação artística do enfrentamento desse estado, a tentativa de representar a profunda divisão de um sujeito entre a vida e a morte.

Calum é um pai jovem e enfrenta problemas financeiros e profissionais que tenta ocultar da filha Sophie, uma menina de onze anos que atravessa a infância em direção à adolescência. A relação deles é tão cativante que nos tornamos confidentes de suas dores e distâncias, somos espectadores capturados pelo desejo de amá-los. O que sabemos sobre ambos sabemos pelas bordas, por aquela rede de não-ditos conhecida por todos nós em algum momento da vida familiar. Como dizer a uma filha que viver é difícil, às vezes insuportável? Como perguntar a um pai o que acontece com ele? O que fazer com essas questões que se enunciam, mas que rapidamente se omitem, escapando para sempre da possibilidade da voz? Talvez esse seja o substrato da obra de Charlotte, o exercício de dar forma às coisas que não conseguimos fazer existir dentro da linguagem comum com o outro.

O valor da figura paterna para a teoria psicanalítica é incalculável ­– assim como para a vida de cada sujeito. Na Interpretação dos Sonhos, Freud descreve uma conversa com seu pai, que marca para sempre sua vida. Jakob narra ao filho um episódio antigo: ele passeava pelas ruas da cidade quando um homem arrancou seu chapéu e o atirou na lama, gritando-lhe ofensas antissemitistas. A pergunta que o menino Freud faz a seguir expressa o olhar do filho pequeno, cheio de ambições a serem chanceladas por um pai-herói, a quem Freud gostaria de poder aproximar de seu ídolo, o general Aníbal, que enfrentou o Império Romano. “O que você fez?”, questiona o menino. “Apanhei meu chapéu”, responde Jakob. É o início de um longo caminho de humanização da figura paterna, uma travessia que Freud percorre em sua vida e em cada linha da investigação psicanalítica (na verdade, ele nunca diferenciou muito uma da outra).

Em meados do século XIX, já em Viena após o êxodo familiar, Freud recebe O livro dos livros, a Bíblia judaica que continha a inscrição de seu pai, uma herança que se desdobra na ambivalência em relação ao judaísmo, mas também numa longa escavação pelos caminhos da escrita. Sobre este livro, e sua significância para a psicanálise, Derrida escreve:

“Seu pai a entrega a ele, depois de tê-la ofertado como presente com nova encadernação de couro. Encadernar, ligar as folhas novamente é um ato de amor. De amor paternal. Tão importante quanto o texto em Melitzah, estes fragmentos bíblicos, litúrgicos ou rabínicos que compõem a longa dedicatória e transmitem, por sua vez, todo o pensamento do pai”.

Não é do pai-herói que Freud extrai aquilo que lhe servirá de trilha ao longo da vida, mas daquele pai que recolhe do chão o chapéu e segue em frente, silencioso diante do ultraje. É desse pai um tanto perdido e que transmite a falta, como Calum, que se pode recolher as substâncias mais inestimáveis — caminho condensado por Lacan em 1976, na frase “é preciso prescindir do pai com a condição de servir-se dele”, que li incontáveis vezes ao longo da minha formação, mas cujo significado apreendi apenas em 2018, ao me despedir do meu pai.

Tenho a impressão de que o pai de Sophie também morre, em algum momento após aquelas férias na Turquia. Mas, de qualquer forma, entre um pai e uma filha há mortes simbólicas por todo lado. De repente desaparece o pai cuja força é anunciada em altas vozes diante dos amigos da infância. Morre o pai que é capaz de enfrentar a morte, aquele que supostamente sentiria os efeitos da vida por trás de camadas e camadas de potência. Descobre-se que a figura paterna pode cair e sucumbir à inanição. A cena de desespero que Paul Mescal nos oferece nesse filme, num trabalho impecável com o corpo, expressa nossa habilidade sempre latente de rendição — todos nós podemos nos transformar em fragmentos vulneráveis, em pequenas criaturas danificadas — e a mais dolorosa das verdades: nós não salvamos ninguém. É diante de um pai entre a vida e a morte que Sophie se encontra; um homem que deseja o mundo ao mesmo tempo em que quer escapar dele.

Numa das noites no hotel, Sophie convida Calum para cantar com ela, mas ele nega. Não é uma recusa imperativamente decidida, mas hesitante e angustiada. No entanto, a menina enfrenta o palco sozinha, à espera de um pai que não vem. É uma das cenas mais comoventes do filme, em que a solidão se faz palpável e dolorida. E não é por acaso: ali está a própria vida, em toda sua amplitude; afinal, um dia é preciso abandonar a ilusão da dupla e enfrentar a radical solidão de contar apenas com a própria voz. Sophie nos ensina sobre esse caminho e, na mesma noite em que decide cantar sozinha, conhece um menino e dá seu primeiro beijo.

Quase ao final do filme, ela aparece já adulta, com sua companheira e um bebê que parece chorar no quarto ao lado. A filiação segue seu curso, desdobrando-se em novas experiências visuais, sonoras e psíquicas. Mas este não é o único fio transgeracional. Da câmera dos anos 80, usada para filmar os momentos na Turquia, desliza um apreço pela fotografia, pelo audiovisual, pela experiência a ser capturada pelas lentes. O que assistimos são recortes mnêmicos de um laço que se faz eterno apesar das destruições da vida. A própria filmagem, feita por recortes angulares parecidos àqueles das câmeras amadoras, nos dá uma vívida impressão de perspectiva e da subjetividade sempre contida na rememoração. Um filme que é feito aos pedaços, iluminando aquilo que o pai transmitiu à filha: um desejo a ser perseguido.

A obra de Charlotte Wells é uma combinação de ternura e perda; mas o que fica, acima de tudo, é a força de um amoroso laço familiar, expresso nesse fluxo intuitivo e emocionante que deságua nas enérgicas vozes de Freddie Mercury e David Bowie cantando Under Pressure com o restante da banda Queen. O “terror de saber o que realmente é esse mundo” expressa a difícil descoberta de Calum e Sophie, da própria modernidade e, no fundo, de todos nós, errantes pais e filhos. Nenhuma música poderia traduzir melhor a jornada desses dois personagens que representam tanto da nossa humanidade e que combatem a inanição usando a força mais curativa e criativa que existe, o amor.

Aftersun me ajudou a ver de novo meu pai, mas agora com outras lentes, evocando o imenso privilégio de contar com a arte para construir novos ângulos para ver o mundo.

Meu pai. Um pai outro e, no entanto, sempre o mesmo — um homem que também viveu na fronteira e de lá me guiou para o mundo, cujo amor foi capaz de ampliar tantos horizontes quanto fosse possível.

Can’t we give ourselves one more chance?

Why can’t we give love that one more chance?

Why can we give love, give love, give love, give love …

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.