(Euphoria) A redenção necessária de Rue.

Cauana Mestre
3 min readApr 19, 2022

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No dia 25 de março, compartilhei no instagram a notícia da morte de Taylor Hawkins, baterista dos Foo Fighters, lamentando a perda de um talento do rock mundial. Recebi a seguinte mensagem: “ah, talvez ele estivesse rezando quando morreu”. Perguntei sobre o sentido do comentário, custei a acreditar que era mesmo um deboche tão declarado. Quando morreu Chorão, uma das vozes que animou minha adolescência, eu me lembro de ver e ouvir comentários parecidos, como se a morte por overdose não pudesse ser lamentada, sofrida, afinal, aquele que se foi escolheu seu destino, não é mesmo?⁣

Não. E, por isso, Rue (Zendaya), personagem central de Euphoria, é tão importante. Ela evidencia que a relação com a droga pode deixar de fora o elemento escolha. O difícil trabalho de reinventar a relação com a substância é justamente o de fazer surgir a responsabilidade, coisa muito mais complexa do que parece.⁣

Em uma das cenas, desesperada para encontrar a mala cheia de drogas que havia recebido de uma traficante, Rue quebra sua casa, grita com a mãe, com a irmã, com o amigo e confronta violentamente a pessoa que lhe parece ser mais preciosa, a namorada Jules. Qual é o cálculo entre ver ali a mesma pessoa, Rue — alguém que decide seu próprio destino — e uma outra, dominada por uma instância soberana que, apesar de ser interna, é incontrolável, inconstante e perigosa? Não há cálculo. E por isso o trabalho é árduo, pressupõe acolher e responsabilizar, pressupõe um tipo de amparo que possa prescindir da ideia de salvação, oferecendo ao sujeito um lugar que não o objetifique. ⁣

O que Euphoria faz muito bem é dizer que Rue não está sozinha, que há, em todo sujeito, uma parte um tanto imóvel, estática, de opacidade avassaladora. Todos nós podemos cair como objetos a serviço de um senhor muito caprichoso que se chama gozo. Não só podemos, mas caímos, nos jogamos, nos fazemos incapazes diante de seus imperativos. Que tolo é acreditarmos que estamos no controle quando, na verdade, trabalhamos duro para ter alguma coisa — talvez uma pequena rédea, quem sabe um alarme silencioso e íntimo, um aviso de que estamos cercando nosso próprio campo minado.

É o trabalho de uma vida. Por isso, quem somos nós para dizer algo sobre o destino alheio? Nós, que também somos nascidos do mal-entendido, efeitos do Troumatisme, como ensina Lacan? Nós também somos orientados por nossa modalidade de gozo e por essa ambivalência tão poderosa que é a dobradiça do objeto: aquilo que nos anima e orienta no mundo também pode nos destruir.

Outro trunfo da série é apostar na comunicação sobre as verdades do capitalismo. Rue é fruto do assédio do mercado, assim como nós. Que cultura é essa que nos ensina a devorar objetos de consumo e depois nos rechaça quando nossa devoração incomoda? Que tipo de sociedade a gente constrói quando acredita que vale amar o compulsivo desde que seu objeto de compulsão esteja vestido pela roupa moral? Que tipo de pessoas nós nos tornamos quando selecionamos pelo filtro do “bem” a direção da nossa humanidade? Acho que já sabemos a resposta, nos tornamos exatamente o que somos hoje, um corpo social doente.

Em entrevista à revista Rolling Stones, Zendaya diz: Rue “vive em mim de uma maneira estranha, não tenho que procurá-la”. Quando li isso, fiquei emocionada. Um grande artista pode se autorizar a ver em si mesmo a coisa mais sofrida, mais incompartilhável, mais revoltante — e com ela caminhar. Não à frente, mas lado a lado, num aproximar-se e afastar-se vivo e contínuo.

Rue é uma das personagens que mais me comove e o sentimento de querer abraçá-la não faz de mim uma pessoa melhor — isso é uma bobagem — mas talvez me torne mais generosa com os meus próprios traços disformes, pois neles também está a marca do meu nome.

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.