(Euphoria) Carl e Nate — e a ilusão do sem-limite.

Cauana Mestre
3 min readApr 19, 2022

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Uma das mensagens de Euphoria é a seguinte: o personagem não tem limites ou convenções. Essa amplitude não se deve aos traços específicos em cena, mas aos efeitos provocados em nós, sujeitinhos do lado de cá, protegidos que somos pela ilusão de realidade. Como espectadores podemos sentir qualquer coisa, as gaiolas morais nas quais nos trancamos estão abertas pela suspensão da descrença. Mas e se desejarmos a “redenção fictícia” para um personagem tão equivocado, o que isso dirá sobre nossa humanidade?⁣

Nate (Jacob Elordi) é um menino rico, bonito, bem sucedido na vida adolescente, branco, supostamente hétero. Tudo em sua vida é calculado para o futuro de um “lutador”, onde toda falha é sinônimo de fracasso — aquele combo básico do garanhão mamãe falei, tão batido e asqueroso, poluindo nossas sociedades e escancarando o que já sabemos (quem ainda se surpreende com esses tipos?). Como é possível dar a Nate a estrutura de um sujeito errante e dividido? A resposta de Sam Levinson, criador da série, não poderia ser mais clara: comece pelo pai.⁣

A relação entre os dois é tão complexa quanto plana. Ao conhecermos os detalhes, sabemos que há muito em jogo, mas nada que não possamos suspeitar, nessa mistura interessante entre surpresa e conhecimento. Nate tem um pai biológico de presença corpórea violenta, demandante, agressiva; ainda assim, não tem ninguém que suporte a aposta da função paterna, seu pai não lhe devolve nada. Os recursos dos quais Nate pode se servir são primitivos: dominação física, poder aparente, virilidade, apreço por relações subjugadas. Nada que o leve muito longe, mas tudo que o leva para o abismo. Para Nate, o ódio está às claras, o que fica obscuro é o amor. ⁣

Impossível assistir à cena em que Nate sonha com o pai e não lembrar do texto freudiano Bate-se numa criança e do par antitético sadismo/masoquismo — aqui levado às últimas consequências. Ao ver aquela cena, pensei que o filho jamais teria chance, seria inevitável pagar com a vida pelos crimes do pai. ⁣

A morte da figura paterna seria o oposto de um ponto de basta, pois produziria uma presença simbólica ainda mais intocável e ilimitada em suas forças, como tão bem nos ensina Freud em seu precioso Totem e tabu. Mas talvez tenha sido possível barrar a onipotência, colocar a lei acima de lei — por isso entregar o pai foi uma saída surpreendente para esse menino tão distante das nossas esperanças. Se é verdade que todo sujeito tem seu sofrimento, seria possível dizer que todo sofrimento é passível de compaixão? Existe redenção quando tudo é indefensável? — é a pergunta que fica após o fim dessa temporada.

Jacob Elordi e Eric Dane tem atuações irretocáveis, nos lembram de que às vezes é preciso ver um pouco mais e quem sabe prescindir de entender e explicar.
Na ficção e na vida.

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.