(Euphoria) Kat e o problema do amor próprio.

Cauana Mestre
3 min readApr 19, 2022

--

Quando penso na personagem de Barbie Ferreira, é impossível não lembrar de uma das melhores cenas de Euphoria. Kat está deitada, frustrada por não conseguir amar o namorado Ethan. Na primeira visão, uma mulher loira, de biquini branco e corpo malhado, aparece e diz que ela só precisa amar a si mesma. A segunda surge para completar: cada dia que você levanta da cama é um ato de coragem. A terceira, nervosa, grita: Kat, pare de dizer que se odeia, essa não é você falando, é o patriarcado. A cena segue com uma série de mulheres gritando mensagens positivas que são enunciadas violentamente. “Você só precisa encontrar sua guerreira interior, livre-se dos padrões de beleza, a sociedade fez isso com você, você é inspiradora, LOVE YOURSELF”. ⁣

A cena é tão maravilhosa que deixa um ar de alívio para quem assiste: essa história de amor-próprio virando piada lava a alma. O coro da positividade não desiste e continua insistindo em fazer soma com o uno, nessa tentativa insuportável de igualar os sujeitos para formar um conjunto social supostamente harmonioso. Uma profusão de discursos que parecem lutar pelo “bem” das mulheres, mas que, ao contrário, apenas atualizam os imperativos aos quais a mulher é submetida. Muda a roupa e o acessório, mas a invasão é a mesma.⁣

“Existe uma diferença entre o que você acha que deveria querer e o que você realmente quer”, lhe diz a amiga Maddy. Parece bobagem, mas essa distinção é cada vez mais difícil e é exigido do sujeito um esforço cada vez maior para separar as pontas, afinal, somos agentes ou objetos? ⁣

O assédio positivo não marca presença apenas no campo da imagem corporal, ele se infiltra por todos os lugares; na relação com o saber, com o trabalho, com as funções exercidas no laço social. Sequer a família, lugar há muito tempo entendido como complexo, escapa. Que arriscado afirmar que a família deve ser um campo puramente positivo onde um complementa o outro, entende o outro e onde os elementos devem ser somados na produção de um resultado sempre pacífico. ⁣

O arco de desenvolvimento de Kat é tão bem construído que vamos nos acostumando com essas reflexões sem torná-las didáticas demais. O empoderamento forçado vai vacilando aos poucos, dando lugar às perguntas essenciais, ainda mal formuladas, mas presentes, vivas, cheias de angústia. Por isso é tão frustrante quando Kat quase desaparece e deixa uma sensação de ruptura para existir na série apenas como a amiga que escuta e acalma. Talvez sua ausência seja o sopro da questão, um alerta para o que deixamos de ver quando estamos vidrados pelos fascínios e pelo exercício intenso de “ver o circo pegar fogo”. Escantear as próprias tragédias para assistir ao drama do outro — não é essa uma grande manifestação da subjetividade contemporânea?

Então, fiquemos com os dilemas de Kat no horizonte — inclusive para lembrar que uma boa série deve ter a habilidade de ir do individual ao coletivo em movimentos orgânicos, mas que sustentem o mal-estar. E não nos esqueçamos do quanto estamos fartos de palavras vazias, de discursos totalizantes, de lugares-comuns que não sabem mais nos divertir e só giram em torno de si mesmos. Mais vale chorar contando a própria história do que levantar sorrindo para aplaudir qualquer coisa.

--

--

Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.