O lugar — Annie Ernaux

Cauana Mestre
3 min readOct 18, 2022

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Um pai é semelhante ao impacto da cultura — de certa forma, nascemos quando aprendemos a recolher, daquele que tivemos como pai, um traçado para servir de caminho. É verdade que esse caminho, no entanto, na melhor das hipóteses se desvirtua, tornando-se outro, mas preservando o desejo de caminhar.

Numa análise, falar do pai é falar de si mesmo e, ao mesmo tempo, transcender a si mesmo e à figura paterna. Talvez a narrativa de Annie Ernaux, em O Lugar (1983), condense um pouco desses dois movimentos e, por isso, pode ser considerada uma autobiografia, uma biografia familiar ou a biografia social de algumas gerações.

Ao narrar a vida de seu pai, do campo ao trabalho operário e depois a um pequeno negócio, Annie narra sobretudo as diferenças que, dissecadas, fazem deslizar a linguagem comum de uma relação que perdura. Seu pai vive no interior da França, como o “patrão”, dono de um café-mercearia com clientes fixos. Annie, por sua vez, vai à universidade e dedica-se à vida intelectual. “Talvez seu maior orgulho, ou até mesmo aquilo que justificava sua existência: que eu fizesse parte de um mundo que o desprezou”, escreve.

Em 2016 fiz uma viagem a NY. Estava sozinha e voltava de uma peça da Broadway caminhando pela Times Square. Às 2h da manhã liguei para meu pai por uma chamada de vídeo. Mostrei a ele a cidade, as luzes, a multidão de gente na rua. Na tela encontrei os olhos marejados de um pai que nunca havia saído do interior e que ali se realizava ao ver uma filha que o ultrapassava. Eu tinha 29 anos e então entendi que o sonho do meu pai era me ver extrapolando as margens, indo além dos confins nos quais ele organizou a própria vida. Entendi que ele nunca quis que eu estudasse simplesmente, mas que quisesse estudar, que desejasse perseguir um desejo que ele mesmo não havia conhecido. Mas seu orgulho por mim nos aproximava e afastava ao mesmo tempo, pois fui me tornando cada vez mais forasteira na cidade natal.

“Ele me levava para escola em sua bicicleta. Barqueiro entre duas margens, debaixo de sol e de chuva”, escreve Annie. “Barqueiro entre duas margens” talvez tenha se tornado a metáfora mais bonita que já encontrei para descrever a função paterna. Manter a margem que circula o doméstico — a casa para onde se volta em tempos tempestuosos — mas exceder a beira, convidar ao mar, revelar um mundo que sempre pode crescer.

Não sei se Annie transcende a relação com o pai para narrar histórica e socialmente os conflitos de gerações, as travessias de uma França que se industrializa, o estrangeirismo íntimo de quem vive entre dois mundos; ou se ela transcende tudo isso para narrar a relação com o pai.

Também as margens da própria literatura são ali desbotadas. Para que servem os confins do gênero mesmo? O que é a Alta Literatura? — ou Literatura com L maiúscula, como escreve Ferrante. Com uma escrita “limpa” e acessível, sem prezar pelo embelezamento excessivo da linguagem ou apelar para o exagero da subjetividade (assim me lembrando muito de Natalia Ginzburg), Annie contesta a crítica literária francesa — a crítica literária em geral — e nos convida a reinventar o imaginário literário que, desenhado pelas tradições, ainda nos amarra.

Sempre penso que canonizar um texto é empobrecê-lo, tirar de suas linhas a comoção do novo. Estudo crítica literária para mergulhar nos livros que me fascinam, mas cada vez se torna mais evidente, para mim, que o que fica da escrita é o ressoar da letra no corpo.

Termino o livro de Annie e busco, na gaveta, o bilhete que meu pai me escreveu no dia da minha formatura: “filha, hoje é segundo dia mais feliz da minha vida. O primeiro foi o dia em que você nasceu”.

Meu barqueiro entre duas margens se chamava Ivan. E debaixo de chuva e sol ele desejou que eu atravessasse fronteiras.

Obrigada por este livro, Annie.

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.