O milagre

Cauana Mestre
4 min readNov 21, 2022

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O milagre é uma produção da Netflix, baseada no livro homônimo de Emma Donoghue e dirigida pelo premiado Sebastián Lelio. No início do filme, a voz de uma narradora nos fala:

“Olá. Este é o começo. O começo de um filme chamado O milagre. As pessoas que você está prestes a conhecer, os personagens, acreditam em suas histórias com total devoção. Nós não somos nada sem histórias. Por isso o convidamos a acreditar nesta. Estamos em 1862. Saímos da Inglaterra para a Irlanda. A Grande Fome ainda é uma assombrosa realidade, e os irlandeses responsabilizam a Inglaterra por essa tragédia”.

Isso é uma ficção. E uma ficção começa sempre com um convite específico, ao qual se pode ou não aceitar. Ao aceitarmos, compartilhamos de um pacto comum — o da suspensão da descrença. Disse Lacan que verdade tem estrutura de ficção; é construída, narrada, transformada, estruturada em torno de fantasias nas quais convidamos o outro a entrar. Por isso, a fronteira entre verdade e ficção é dispensável. Por outro lado, sempre é preciso diferenciar a ficção da mentira e a diferença é radical, já que a ficção exclui a onipotência de todos para incluir a decisão de cada um. A ficção conta com o pacto.

Florence Pugh é Lib, uma enfermeira inglesa enviada à Irlanda para vigiar Anna (Kíla Lord Cassidy), uma menina de 11 anos que afirma não precisar comer e estar em jejum há mais de quatro meses. Os pais e a irmã de Anna, assim como toda a comunidade, acreditam na santidade da menina cujo corpo se dá ao sacrifício. A estratégia inicial do filme, a de nos convidar a entrar no pacto compartilhado da ficção, é eficiente por marcar a impotência da personagem — a Anna não é oferecido pacto algum.

O sacrifício de Anna é religioso, serve à crença no milagre. Ela diz se alimentar de “maná do céu” e não sentir fome de outra coisa, como se o seu corpo não pertencesse mais à realidade terrena. Assistindo, lembrei de uma menina libanesa que, nos anos 90, ficou famosa por chorar pedaços de cristal. Aquela história me fascinava, a possibilidade de ultrapassar o real. Se aquilo era possível no mesmo mundo que o meu, o que seria impossível?

Uma frase do filme Agnus Dei nunca mais me saiu da memória: a fé tem 1 hora de certeza e 23 horas de dúvida. O fundamentalismo religioso vê, nessa afirmação, uma ameaça, pois sabe que é frágil a crença que precisa ser o tempo todo controlada. Acreditar é ter coragem de incluir a incerteza e saber que tudo que é vivo e dinâmico vacila. Num ato de amor, o jornalista William Byrne (Tom Burke) dá a Anna um presente; é um pássaro desenhado na madeira que, pelo movimento das cordas, entra e sai de uma gaiola. “Ele está preso ou está livre?”, a menina pergunta. “Você decide”, responde William. “In and out”, ele completa. “In and out”, repete a menina, na tentativa de alcançar outras crenças e entender que a mobilidade da vida nasce dos paradoxos.

A religião de Anna, na verdade, não se baseia no amor a Deus, mas no amor à mãe, na entrega incondicional do seu corpo, do seu ser e do seu destino. Enquanto isso, a enfermeira Lib, que a princípio parece cética, vai descobrindo que aquilo que a enlaça à Anna é justamente a lógica do suplício e do culto ao trauma. Ambas, cada uma a seu modo, nos mostram que a religião — seja ela qual for — tem muitos nomes e formas e, se para alguns pode servir à vida, para outros pode velar a violência.

Não somos nada sem histórias, diz a narradora do filme.

E nossas histórias incluem as histórias alheias. Nos inspiramos pelas narrativas dos outros, recolhemos delas pedaços e com eles costuramos nossos próprios arranjos. À diferença da mãe de Anna, que inclui a filha na mentira, Lib oferece a ela a ficção, convida a menina a fazer parte de um pacto numa crença que nada tem de natural e que terá de ser construída com esforço e dúvida: uma família.

Nenhum laço é natural.

Tudo é construído.

In and out.

In and out.

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.