O talentoso novo Ripley

Cauana Mestre
5 min readApr 18, 2024

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No século 17, Caravaggio foi julgado por dezenas de atos violentos, incluindo um homicídio em 1606, de coordenadas nunca totalmente explicadas.

Quando estive na Itália pela primeira vez, chorei aos pés de La conversione di San Paolo e La Crocifissione di San Pietro, ambos pintados em 1601. No ano passado, em Nápoles, pude ver a Flagelazzione di Cristo, pintada em 1607, apenas um ano após o assassinato. Era uma exposição no Museo di Capodimonte e a única coisa que me separava das obras era uma corda a menos de um metro de distância. Era uma sala escura e, como cheguei muito cedo, estava sozinha. Éramos apenas dois, a obra e eu, e ficou quase difícil respirar. Nada nos prepara para o encontro com a arte, nem mesmo a paixão pelos pintores — e a minha por Caravaggio é de longa data.

Por isso fiquei completamente deslumbrada com a nova versão do romance policial de Patricia Highsmith, de 1955, The Talented Mr. Ripley — que nos brinda com Caravaggio como narrativa paralela. A série de Steven Zaillian para a Netflix é estonteante, mas é preciso ter certa abstração para vê-la. Se eu pudesse dar uma dica, seria: não tenha pressa. Sirva-se de uma taça de vinho e apenas abandone-se no sofá; essa não é uma obra para a precipitação.

O cenário é o mesmo das outras versões, Itália. Roma, Palermo, Veneza, Atrani. A diferença é que todas as cidades perdem suas cores para a decisão acertadíssima de Zaillian pelo preto e branco. Paradoxalmente, os lugares tornam-se ainda mais vívidos e imponentes sem as cores que nos distrairiam da brutalidade refinada que a série ostenta.

Tom Ripley vive de pequenos golpes em NY até que o Sr. Greenleaf decide pagá-lo para ir até a Itália convencer seu filho Richard — Dickie — a voltar pra casa. A história a gente já sabe. O que é singular nesta versão é que a arte se transforma em personagem e nos acompanha o tempo todo. Os monumentos artísticos das cidades aparecem recorrentemente enquanto Tom se movimenta de um lado para o outro, como se vigiassem seus atos no escuro. A arte como esse elemento incorruptível, impossível de enganar. Afinal, pode-se esconder qualquer coisa sob véus imaginários, mas, diante da arte, quando tudo que temos é a materialidade do corpo e a materialidade da obra, aquilo que vem é sempre novo, sempre surpreendente e, portanto, sempre verdadeiro.

O outro elemento imperdível da série é Lucio, o gato que espreita pela vila onde Tom aluga um apartamento em Roma. É um gatinho que faz jus ao nome, um gatinho luminoso, sempre se esgueirando pelos bancos e escadarias e nas frestas de sol. Um nome, aliás, que não me parece fortuito. Lucio e Lúcifer têm a mesma raíz etimológica, a palavra Lux, que em latim significa luz ou luminoso. Lúcifer é o portador da luz, aquele que anuncia o amanhecer, a Estrela da manhã — ou o planeta Vênus. Na mitologia romana Lúcifer é filho de Aurora, deusa do amanhecer; ele é o ser celestial que luta pelo lugar mais alto do céu e que, não conseguindo, desce para governar o submundo. Uma metáfora para Ripley, que deseja estar à altura daqueles que inveja e fere? E que, não conseguindo, desce cada vez mais na perversão de sua humanidade?

Na Itália, mais precisamente na região da Sardenha, viveu Lúcifer de Cagliari, Bispo do Século IV, que foi santificado de forma um tanto nebulosa. Já na tradução latina da Bíblia, a palavra Lúcifer aparece algumas vezes, sempre indicando a aparição de uma luz ou de uma estrela que indicaria caminhos de prosperidade e esperança. O próprio Jesus é chamado de A Estrela da Manhã. Em uma única passagem Lúcifer aparece como um anjo caído do céu, interpretação de alguns tradutores que chegou à compreensão de Lúcifer como inimigo de Deus e da humanidade, “um poder adversário que por um momento foi luz”.

A ambivalência que Lucio traz para a série, junto de sua inefável sedução, me faz pensar no quanto é importante assumirmos a complexidade daquilo que somos — e que também reside no outro. Ninguém é sempre amável, solícito ou generoso. É melhor ver lampejos de maldade e inveja do que de repente topar com elas em seu radical.

A série de Zaillian me conquistou irremediavelmente. Ela tem tudo que pra mim é indispensável: complexidade no conjunto da obra, fotografia e estética impecáveis e, ainda de quebra, a chance de ver uma história conhecida por novos ângulos e narrativas — uma coisa que sempre me encanta.

O requinte da atuação de Andrew Scott quase ofusca todas as outras atuações, que também estão excelentes — especialmente o Inspetor Pietro (Maurizio Lombardi), brilhante. O enigma da sexualidade, tão bem colocado em cena, transforma Tom em um homem dividido em uma série de possibilidades interpretativas, mas que realmente não importam muito diante da soma de tantos efeitos extraordinários. O ritmo dos episódios é realmente lento, mas tente desgrudar da tela enquanto Tom arrasta um corpo pela escada aos olhos do gatinho Lucio. Duvido que você consiga!

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.