Pobres Criaturas, a obra-prima de Yorgos Lanthimos e Emma Stone

Cauana Mestre
5 min readFeb 5, 2024

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A tarefa de escrever sobre um filme que alcança tão intensamento o afeto, para mim, é sempre dificílima. Fico dividida entre a tentação de entupir o word com as minhas impressões ou ser sucinta, buscando apenas uma chave de leitura. Torna ainda mais difícil o fato de essa não ser uma tarefa que eu tenha recebido, mas uma tarefa solitária — minha própria vontade de escrever contra minha própria resistência.

Mas tem algo essencialmente solitário no lugar da espectadora e existem filmes que preciso assistir sozinha, como se a palavra alheia pudesse contaminar algo da experiência com o cinema — que, pra mim, é sagrada. As luzes que se apagam, os momentos que antecedem a virada e, sobretudo, o fim, quando tudo se ilumina e eu continuo compartilhando a sala de cinema com aqueles que, como eu, ainda não estão prontos para ir embora.

É perigoso tentar dizer algo sobre a intenção de um artista, mas acredito que os bons artistas sempre tentam alcançar seu público, cada um à sua maneira. Eu, no entanto, fico realmente apaixonada por aqueles que não apenas renunciam à tarefa de tentar produzir um efeito calculado no outro como se surpreendem com o próprio trabalho, o que faz com que o efeito-surpresa apareça de forma genuína. Algo disso está em jogo e em cena no filme de Yorgos Lanthimos, Pobres Criaturas, uma obra cujo processo criativo é múltiplo e único, lógico e bizarro, específico e atemporal, e cuja combinação de paradoxos revela, por fim, uma essência profundamente feminista.

Emma Stone interpreta Bella Baxter, uma jovem mulher que se forma ao longo do filme, descobrindo, a um só tempo, o mundo e a si mesma. No início, ela é praticamente não-verbal, uma tela em branco aos cuidados do médico Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe) — GOD -, gênio criativo da ciência que transforma o corpo de Bella em mais um receptor de suas invenções, ultrapassando a relação criador-criatura e construindo, com ela, um laço afetivo. É impossível não traçar um paralelo entre o romance do escocês Alasdair Gray — de onde Tony McNamara adapta o roteiro — e o Frankenstein, de Mary Shelley; mas há, também, muitas diferenças, e talvez a principal delas resida no amor parental que brota de Godwin e no esforço que ele faz para permitir a partida de Bella, contrariando sua própria história ao não repetir os abusos que sofreu do seu pai. Aos poucos, Bella vai se transformando em uma mulher curiosa e a ferocidade da sua fome pelo mundo já não pode ser contida pelas fronteiras de Londres.

Então, ela embarca em uma jornada sensorial e psicológica com o advogado Duncan Wedderburn (vivido pelo incrível Mark Ruffalo) e vai a Lisboa, Alexandria e Paris. Nessa viagem, Bella tem a chance de viver a primeira vez de muitas coisas: o primeiro orgasmo, o primeiro sexo, a primeira confusão emocional, a primeira dança, a primeira comida irresistível. Ao chegar em Alexandria, o primeiro desespero a atinge e ela cai, consumida pela agonia de assistir ao sofrimento alheio. Esse é um dos momentos mais bonitos do filme, ali vemos o encontro dessa personagem com sua primeira experiência de impotência; esse é o trauma que tantos de nós levamos para nossas sessões de análise e que trabalhamos arduamente para separar da desesperança e transformar em algum tipo de causa. Bella Baxter abandona o idealismo e decide pela coragem; ela acredita que as pessoas são capazes de improvement e que ela pode ser uma força, uma força no mundo.

Não é possível precisar exatamente o marco temporal do filme, mas é possível dizer que ele mantém em cena a luta contra as raízes patriarcais que aprisionam a sexualidade feminina. Bella Baxter é uma personagem feminista como nem tantas no cinema (embora seja triste admitir isso). Sua subversão da lógica masculina é construída a partir do desejo legítimo de expandir as fronteiras, mas também da vontade legítima de trazer consigo as mulheres que atravessam seu caminho. Bella conhece sexualmente muitos homens, mas é com uma mulher amante/amiga que ela protagoniza a primeira cena de carinho em cima de uma cama — e isso não é por acaso.

Lanthimos capricha nos elementos fantásticos e cria uma atmosfera onírica. Mas aqui é bom lembrar: o filme consegue fazer isso ao mesmo tempo em que cria uma lógica muito bem delimitada, o que é dificílimo. Conspira com o brilhantismo o figurino criado por Holly Waddington, que tem a laboriosa tarefa de expressar o processo de formação de Bella — isso merece um capítulo à parte, mas deixo aqui a imagem do vestido de noiva usado por Bella. É um belíssimo exemplo de como Waddington mistura elementos paradoxais — como as mangas imensas e bufantes e o tecido extremamente delicado — para dar à personagem a força e a ambivalência que lhe são características.

Uma das principais decisões de Waddington foi renunciar aos espartilhos, apesar do figurino parecer precisar deles. Segundo ela, “é isso que faz as roupas parecerem tão livres. Este é um filme feminista; conceitualmente, se você está tentando fazer um filme feminista, não fica muito bem colocar sua liderança nesta peça de roupa que força o corpo a uma forma idealizada, que é o que o espartilho faz”.

Por fim, não há palavras para descrever a intensidade do trabalho de Emma Stone para dar vida a essa personagem que já se transformou em uma das maiores personagens femininas do cinema. A viagem feminista de Bella Baxter é intuitiva, multifacetada e nos ensina que não há nada no mundo que seja tão transgressor quanto uma mulher que ama sua própria jornada.

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Cauana Mestre

Psicanalista. Mestranda em Estudos Literários (UFPR). Ando pela psicanálise, pela arte e pela literatura.